Apesar da abolição legal, a sina da escravidão parece nunca abandoná-los
Lúcia Porto
Depois de 500 anos, a dor de cabeça continua a mesma. Reis, ditadores, feitores e presidentes se passaram. Se, quando o Brasil ainda era apenas um pedaço de terra fértil à beira de muito mar, os negros africanos já vinham sendo utilizados como mão-de-obra es-crava pelos brancos - e nem sempre nobres - senhores europeus, o descobrimento só fez mudar a rota do lucro para aqueles que viviam da venda do trabalho forçado. Entenda-se forçado porque exigia o comércio do homem que o realizava, resumido à categoria de mercadoria.
A preocupação que começou a se desenhar já no desembarque dos escravos - como integrar essa população num país tão desigual? - ainda é uma constante nos dias de hoje. Em 1888 uma lei com apenas dois artigos, um extinguia a escravidão e outro revogava todos as disposições em contrário, acabou oficialmente com o comércio e com o problema. Não éramos mais escravistas. Com isso, deveria acabar o trabalho forçado. Mas não foi bem assim.
Outras leis se seguiram. No início dos anos 50 deste século 20, a discriminação racial foi transformada em crime; a Constituição de 1988, em seu artigo 5º, passou a considerá-la crime inafiançável e imprescritível. Apesar disso, as mudanças não vieram. “A discriminação ainda é a maior herança e pagamento que os negros têm até hoje, como recompensa pelos trabalhos prestados ao país por vários séculos”, reclama Maria Conceição Lopes Fontoura, ativista do Movimento Negro, representante do Maria Mulher, organização de mulheres negras que atuam em Porto Alegre. Para ela, o Rio Grande do Sul é um estado onde o negro já acorda sabendo que é negro. “O Rio Grande não mascara o preconceito que tem”, completa.
Bom ou ruim? Ela não sabe. Sabe que negros recebem salários menores do que brancos na mesma função e sabe de mulheres pretas que realizam tarefas bem abaixo de sua capacidade por preconceito. Dos cerca de 66 milhões de negros que vivem no Brasil hoje (cerca de um terço da população), apenas 6 milhões fazem parte da chamada classe média. “E os outros 60 milhões ?”, questiona.
A história dos negros (como de todo homem que vive na Terra) começa na África. Divididos em grupos, eles disputavam espaço e poder e os mais fortes submetiam os mais fracos. Com o mercantilismo, os mais fracos foram sendo transformados em mercadoria e vendidos aos colonizadores europeus como mão-de-obra. As peças - homens, mulheres, crianças e velhos -que saíam do outro lado do mundo muitas vezes caminhavam milhares de quilômetros selva à dentro. No Novo Mundo eram ofertados, comprados, vendidos, pechinchados, tinham seus dentes examinados, seus músculos testados. Os bons acabavam nos cafezais, nos trigais, nas charqueadas. Aos fracos restava cuidar do gado.
No Brasil, o último país americano a abolir a escravidão, mais de 3 milhões de escravos começaram a chegar por volta de 1550. De cada três que embarcavam da África nos navios negreiros, apenas um chegava vivo. Para o Rio Grande do Sul eles vieram junto com os casais de açorianos, entrando por mar, via Rio Grande, ou por terra, a partir de Laguna.
Os negros começaram a colonizar o Rio Grande antes dos imigrantes europeus e tiveram um papel destacado na economia gaúcha. Nos idos de 1800, quando o charque era a força motriz do estado, o trabalho era todo feito por mãos negras. Segundo Maria Conceição, a situação de exploração não mudou muito de lá para cá. “Somos assalariados, mas continuamos fazendo as piores tarefas e recebendo menos por isso”, constata.
http://www.sinpro-rs.org.br/extra/nov_99/brasil_500.htm